Momento Psicóloga

  • Acompanhe

“Tem outra opção?” – breves reflexões sobre violência e vulnerabilidade social

15 abril, 2013, Paula Saretta Momento Psicóloga 2


“Tem outra opção?” – breves reflexões sobre violência e vulnerabilidade social

Por Paula Saretta (Ouvindo Crianças)* e o promotor Mário Luiz Ramidoff[1]

Não é de hoje que a comoção social que um crime cruel, como o caso do adolescente que atirou, à queima roupa, em um jovem universitário, choca, mobiliza e faz todo mundo gritar (bem alto) por justiça. Grito inevitável. Talvez ele consiga diminuir a dor, anestesiar um pouco o sofrimento que aquela cena terrível, mostrada insistentemente pela grande mídia, nos causou.

Somos um país de imediatismos. Os efeitos arrasadores da violência em cada um de nós, faz com que tenhamos uma reação (visceral até) de justiça a qualquer preço. É meio óbvio pensar que todos, independentemente da defesa, queiram que haja uma consequência séria e eficiente para adolescentes que cometem crimes assim. Parece consenso também que todos pensem que deva haver uma discussão mais séria sobre as reais causas do problema que, diga-se de passagem, não é exclusivo daquele menino que matou sem pensar. “Mas a impunidade que faz com que ele mate na maior tranquilidade”, muitos defendem. De que impunidade estamos nos referindo? Será que é só isso? É por isso que ele mata sem afeto, sem pudor, sem medo aparente? Por que o Direito Penal não age punindo menores como adultos, já que eles são capazes até de matar?

Na prática, explica o promotor Mário Luiz Ramidoff, a PEC 33/2012* é inviável jurídica, política e socialmente, isso porque a Constituição da República de 1988, não só estabelece no seu art. 228 a inimputabilidade penal, mas, também, o assegura como direito individual de cunho fundamental, nos termos do inc. IV, do § 4º de seu art. 60. A ação conflitante com a lei (“ato infracional”), certamente, não é um acontecimento isolado na vida do adolescente, e, muito menos, no mundo da vida vivida. Por isso mesmo, não se pode falar em “verdadeiras causas” a serem combatidas a partir da análise de casos absolutamente isolados e que sequer representam estatisticamente índices significativos da violência social urbana – cerca de 6% (seis por cento) aproximadamente, dos quais 0,5 % (meio por cento) são praticados com violência contra a pessoa. A eventual redução da idade de maioridade penal, insofismavelmente, não se constitui na “solução” e, sequer, num dos principais “dispositivos” para o “combate” da suposta “criminalidade juvenil”. Senão, que, assim, apenas seria legitimada a inércia das estruturas administrativas destinadas ao atendimento da criança e do adolescente, haja vista que supostamente a partir de então o Sistema de Justiça Penal, por si só, adotaria todas as providências legais para a contenção e emancipação do adolescente em conflito com a lei. O Direito Penal não tem por função a proteção da vítima e muito menos do adolescente a quem se atribui a prática de uma ação conflitante com a lei, haja vista que se destina apenas à responsabilização criminal – isto é, repressão e punição – das pessoas que praticaram condutas consideradas delituosas.

O Sistema Penitenciário, por exemplo, finaliza o promotor Mário Luiz Ramidoff, já não possui espaço físico e sequer condições humanas suficientes para a privação da liberdade das pessoas com idade plena de maioridade penal, que, apesar de já se encontrarem judicialmente condenadas, ainda não iniciaram o cumprimento da pena (sanção penal), uma vez que não foram efetivados os respectivos mandados de intimação e ou de prisão. As condições do cárcere são deletérias, quando não se deve atentar para o fato concreto que, no Brasil, o tempo de privação da liberdade (unificação) é de, no máximo, 30 (trinta) anos, motivo pelo qual, o adolescente com 12, 13, 14, 15, 16 ou 17, certamente, retornaria à liberdade com idade suficiente, e, de igual maneira, “potencializado”, para a prática de crimes mais violentos, em virtude mesmo do contato com a subcultura carcerária, uma vez que se encontraria sem qualquer aderência aos “valores socialmente compartilhados” – por assim dizer.

Ou seja, reduzir a idade penal não afasta a criança e adolescente do crime. Pensamos com ele sobre tudo isso e voltamos nossos olhares, mais uma vez, para as nossas crianças. Como criamos (sim, todos nós temos a ver com isso!) jovens que matam, no impulso, sem pensar (moralmente falando) no outro?

A violência está sendo aqui compreendida como um fenômeno social complexo que acontece como manifestações de insatisfações de relações de poder, num nível individual ou coletivo, de forma concreta ou simbólica. As formas de expressão podem aparecer como violência física, psicológica, sexual, auto-infringida (auto-flagelo) ou mesmo patrimonial.

A falta de instrução/educação e depois de emprego, por exemplo, pode fazer com que jovens tenham como alternativa a formação de gangues, ocupem espaços públicos e tenham maior probabilidade de serem “acolhidos” no mundo do crime. A estes fatores que, quando presentes, aumentam a probabilidade de o indivíduo apresentar dificuldades e problemas físicos, sociais ou emocionais, chamamos de fatores de risco. Os fatores de risco se caracterizam por condições ou aspectos da realidade que intensificam a probabilidade de um indivíduo ou um grupo desenvolver desordens psicológicas ou sociais. O contraponto destes fatores de risco são os chamados fatores de proteção, que se caracterizam por eventos que aumentam a possibilidade dos sujeitos não serem afetados pelos fatores de risco, devido a recursos próprios ou ambientais[2].

Deste modo, enquanto os fatores de risco aumentam a possibilidade de algumas consequências negativas, os fatores de proteção reduzem a chance de uma consequência negativa ou aumentam as chances de resultados positivos. A característica primordial destes fatores, entretanto, é a modificação da resposta da pessoa frente à situação de risco, seu papel é o de modificar a resposta em momentos adversos.

A vulnerabilidade social é porta de entrada para o aumento dos fatores de risco, por isso, pensamos em intervenções que busquem prevenção da violência, uma vez que este tipo de intervenção busca, por princípio, eliminar processos negativos (fatores de risco) e aumentar ou intensificar processos positivos (fatores de proteção). Exatamente por isso que estratégias de prevenção vêm ganhando cada vez mais espaço e parecem ser um caminho promissor, prioritário e emergencial nas politicas públicas.

Mas quando não conseguimos intervir a tempo, nos explica o promotor Mário Luiz Ramidoff, com o advento da Lei 12.594/2012 (lei do SINASE – “Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo”), que regulamenta o cumprimento das medidas socioeducativas e também estabelece princípios, regras e critérios específicos para o acompanhamento sociopedagógico do adolescente em conflito com a lei, novos institutos jurídico-legais (protetivos) e orientações de atividades profissionais deverão e estão sendo desenvolvidos.

A Lei do SINASE ao ser efetivamente implementada, orçamentária, estrutural e funcionalmente, por certo, constituir-se-á num importante instrumento para a responsabilização diferenciada de adolescentes a quem se atribui a prática de ações conflitantes com a lei, e, reflexamente, numa via significativa para a inibição da prática de tais ações. Esta Lei, para o mais, determina a vinculação dos dirigentes das entidades de atendimento, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário, aos ditames da responsabilidade diferenciada com base nos direitos humanos – doutrina da proteção integral – que, também, determina ao adolescente não só limitações significativas, mas, também, o desenvolvimento da solidariedade, do respeito e da responsabilidade pelo outro[3].

A Lei do SINASE, juntamente, com a Constituição da República de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente, torna interdito o sentimento de impunidadeque jamais pode ser confundido com a inimputabilidade penal –, haja vista que estabelece responsabilização diferenciada, por vezes, mais severa do que aquelas destinadas ao adulto.

O adolescente, por exemplo, pode ser privado de sua liberdade por até 3 (três) anos de sua juventude, e, assim, levando-se em conta que a juventude perdura por apenas 6 (seis) anos – isto é, dos 12 anos completos até 18 anos –, caso seja reduzida a idade de maioridade penal, indaga-se: quando o adolescente teria tempo para adolescer? Quando o adolescente poderia aprender a deixar de ser criança e passar a ser adulto? Quando o adolescente deverá ser inserido nos programas de políticas sociais públicas, se lhe for suprimida a oportunidade legal de acesso aos direitos individuais e às garantias fundamentais (liberdades públicas)?

No Paraguai, a idade de maioridade penal é de 14 (quatorze) anos, sendo certo que todos – isto mesmo todos! – os adolescentes (lá considerados maiores) que se encontram privados de liberdade no Sistema Prisional paraguaio são portadores do vírus da AIDS, analfabetos, e, completamente, vitimizados pelo cárcere – vítimas preferenciais de todo tipo de barbárie – e, em breve, deverão retornar ao convívio social.

No Japão, a idade de maioridade penal é de 20 (vinte) anos, senão, que as medidas privativas de liberdade, preferencialmente, são substituídas por medidas de aconselhamento e acompanhamento social, em meio aberto.

Certamente, finaliza o promotor Ramidoff que, a mudança cultural sobre a responsabilização diferenciada do adolescente, antes do mais deve ser operada no âmbito das relações político-socioeconômico, com apoio institucional à família, investimentos na educação, saúde e trabalho. Pois, a mera responsabilização penal não tem por objetivo a melhoria da qualidade de vida individual e coletiva, mas, tão-somente a repressão-punição, isto é, ao castigo, à vingança privada ou pública, através da violência estatal supostamente legitimada por casos graves, num processo espiral de eterno retorno à violência, e, consequente, abstinência funcional do Estado (Poderes Públicos).

E, para fechar nossa contribuição ao debate, uma história da vida real para exemplificar ainda mais do que estamos falando…

Sabe aquele velha e boa pergunta que todos fazemos para as crianças, quase na sequência de quantos anos você tem? Sim, aquela mesma: “O que você quer ser quando crescer?” Então! Certa vez, uma criança de 8 anos que frequentava uma ONG em um bairro periférico de São Paulo, deu a seguinte resposta para esta questão: “Eu tenho duas opções. A primeira é ser honesto e trabalhar, trabalhar, trabalhar…, mas nunca ganhar nada. A segunda é não ser honesto e ganhar muito dinheiro para comprar tudo que quero ter, tênis, roupas, etc..”

“Mas você vai escolher ser honesto, né?” perguntou a monitora da sala, em tom afirmativo. Ele pensou por uns minutos e continuou: “não sei, porque se eu for [honesto] vou viver mais… Mas se eu não for, vou aproveitar mais e viver menos, porque bandido morre novo, né?” As crianças presentes riram.

“Existe uma terceira opção!” – reagi imediatamente. O silêncio foi também imediato. E continuei: “vocês podem estudar, ter uma boa formação, ganhar bem de modo honesto e viver bastante. Já pensaram em uma profissão, numa faculdade que queiram fazer?” O silêncio continuou. Até que uma das crianças disse: “Tia, o que é faculdade?”. Ninguém mais riu. Ninguém sabia do que eu estava falando. O trabalho (como psicóloga escolar) começara ali. Nem preciso dizer que um mundo novo estava sendo apresentado para eles, acreditem, pela primeira vez.

Trabalhar com a perspectiva de oferecer condições, oportunidades, reflexões críticas por meio da educação, é algo que está ao nosso alcance concreto e nos parece uma esperança para pensar que toda uma geração de crianças e jovens poderia ter um caminho ou um “destino” efetivamente alterado.

Ah! E isso tudo não deveria ser só “papo de sociólogo”, mas também seu/meu e de todo mundo que se interessa em contribuir com o futuro de quem está crescendo bem debaixo dos nossos olhos.


[1] Mário Luiz Ramidoff é Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (2007). Promotor de Justiça do Ministério Público do Estado do Paraná. Professor Titular do Centro Universitário Curitiba. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito da Criança e do Adolescente e em Direito Penal, atuando principalmente nos seguintes temas: Direito da Criança e do Adolescente, Ministério Público, Direito Penal, Direito Processual Penal, Criminologia e Política Criminal.

* Paula Saretta é psicóloga. Doutora em Educação pela Unicamp. Mestre em Psicologia Escolar pela PUC-Campinas. Aperfeiçoada em Queixa Escolar pela USP. Formadora de professores e Consultora em Psicologia e Educação. Fundadora do site/blog Ouvindo Crianças.

[2] Ver mais em Guzzo, R. S. L.. Resiliência e vulnerabilidade: conceitos e discussões para uma psicologia que se recrie pela crítica. In D. D. Dell ́Aglio, S. H. Koller, & M. A. M. Yunes (Orgs.), Resiliência e psicologia positiva: interfaces do risco à proteção (pp.11-16). São Paulo: Casa do Psicólogo, 2006.

[3] Para saber mais, leia a obra completa: Ramidoff, M. SINASE: comentários à Lei 12.594/2012, São Paulo: Editora Saraiva, 2012.

* PEC 33/2012 – Proposta de Emenda Constitucional – que visa alterar os artigos 129 e 228 da Constituição Federal, acrescentando um parágrafo único para prever a possibilidade de desconsideração da inimputabilidade penal de maiores de dezesseis anos e menores de dezoito anos por lei complementar.

  • DENISSON DE AZEVEDO LISBOA

    A questão é bastante — complexa e conflituosa… Todavia, é válida a discussão! No entanto, penso que NÃO se trata de colocarmos ou deixarmos de colocar CRIANÇAS e ADOLESCENTES no MUNDO da Criminalidade. Trata-se, sim, de sermos REALISTAS. Não há mais espaço e tempo para nos atermos às utopias. Todos nós sabemos que vivemos no Brasil, onde POLÍTICAS PÚBLICAS de prevenção e reinserção de Criminosos na Sociedade — EFETIVAMENTE não funcionam.
    A priori, bem se sabe que assim como o DIREITO não é absoluto, pois acompanha a Evolução das Sociedades Inseridas; também o é, a Visível TRANSFORMAÇÃO da Genética e Biologicamente falando — a MUTAÇÃO sociocultural de todos nós na Contemporaneidade.
    É fato. É inegável que um jovem de 16 (dezesseis) anos — sabe e deve saber das consequências de seus ATOS.

    • http://ouvindocriancas.com.br Paula Saretta

      Sim, Denisson, a questão é bastante complexa. O interessante de tudo isso é que estamos todos (com opiniões convergentes ou não) movimentando um debate muito importante. Precisamos pensar em caminhos, precisamos urgentemente de alternativas possíveis, de ações concretas… Por isso, não se trata de ter ou não razão, mas, sim, de lutarmos juntos. O debate já parece ser um bom começo… Um abraço e obrigada por compartilhar suas ideias!